Como era esperado, o governo Lula, logo em seus primeiros dias de mandato, promove alterações na legislação ambiental brasileira.
Para a advocacia ambiental, importante alteração ocorreu no Decreto Federal 6.514/08, que dispõe sobre as infrações e processo administrativo ambiental em nível federal. A principal mudança ocorre com a extinção da fase de conciliação que estava sendo implementada no governo anterior. A alteração deu-se pelo Decreto Federal 11.373/23, o qual passamos a analisar, brevemente, a partir de agora.
a) O fim da conciliação ambiental
Uma das grandes críticas do movimento ambientalista [1] foi a instauração de uma fase de conciliação no processo sancionador ambiental, considerado como um entrave burocrático à cobrança das multas aos infratores.
A conciliação é um instrumento importante como solução alternativa para encerrar litígios, inclusive consagrada no Código de Processo Civil [2], com a participação de um terceiro (isento) na condição de conciliador. Nos processos federais do Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a conciliação ficava a cargo do "núcleo de conciliação", formado por servidores do órgão — a condição de "conciliador isento" acabava por prejudicada.
De todo o modo, a realização desta audiência de conciliação no órgão ambiental servia para encerrar os processos administrativos no seu início, a fim de reduzir o tempo do seu trâmite mediante "acordo" realizado entre o infrator e o órgão ambiental antes mesmo da apresentação de defesa, no caso de multa indicada no auto de infração.
Porém, desde a implantação [3] dos "núcleos de conciliação", por meio do Decreto 9.760/19, havíamos alertado sobre o risco da estrutura se transformar em mais uma instância burocrática a trabalhar pela ineficiência dos processos sancionadores.
E isso efetivamente aconteceu: seja pela dificuldade de estruturação do órgão ambiental para a adequação destes procedimentos em prazo razoável; seja pelo alcance reduzido da conciliação, que se limitava a disponibilizar em audiência as opções para o encerramento do processo (pagamento, parcelamento ou conversão de multa), sem qualquer discussão sobre o mérito da infração e medidas cautelares (embargo ou apreensão de bens) ou mesmo estabelecer a reparação do dano.
Ou seja, a solução alternativa de conflitos via conciliação, na forma proposta, fracassou no processo sancionador ambiental em nível federal. Importante ressaltar que iniciativas aprimoradas de conciliação em órgãos ambientais estaduais e municipais, com legislação própria, seguem válidas e com exemplos de sucesso em sua implementação.
Coube ao novo governo revogar os artigos que tratavam do tema conciliação e haviam sido inseridos no Decreto 6.514/08. Ressalta-se que a simples retirada desta fase processual não representa nenhuma garantia de cumprimento do princípio constitucional da eficiência, conforme artigo 37 da Constituição Federal. No documento "Relatório de Avaliação do Processo Sancionador" [4] elaborado pela Controladoria Geral da União durante o período de 2013 a 2017 (portanto, sem fase de conciliação), houve demonstração da ineficiência estatal na cobrança de multas ambientais, inclusive recomendando ao Ibama a "adoção de um novo modelo para o processo sancionador". Como bem indica Paulo de Bessa Antunes "os sistemas que foram até aqui utilizados são pouco eficientes e, na prática, atrapalham a própria arrecadação dos valores decorrentes de multas" [5].
Com a revogação da fase de conciliação, houve a necessidade de readequação de grande parte do processo sancionador ambiental, retornando, de certa forma, ao modelo anterior ao ora sepultado.
b) Dos procedimentos
Como referido, a alteração do artigo 96, §5º no Decreto 6.514/08 retirou a possibilidade de conciliação. À pessoa física ou jurídica, autuada por infração ambiental, mantém-se inalterada a condição de apresentação de defesa no prazo de 20 dias, em caso de não concordar com a indicação de sanção. Este prazo faz parte do processo sancionador ambiental desde a edição da Lei Federal 9.605/98 (artigo 71); porém, na redação do Decreto 9.760/19, restava suspenso até a realização de audiência e eventual insucesso da conciliação.
No referido prazo, além da apresentação de defesa, oportuniza-se a adesão "a uma das soluções legais para encerrar o processo", quais sejam, 1) o pagamento da multa; 2) o parcelamento da multa; ou 3) a conversão da multa em serviços ambientais. Ou seja, mesmo sem audiência conciliatória, é possível antecipar a finalização do processo administrativo.
Se a conciliação (ou pelo menos, a forma como foi implementada) foi sujeita a muitas críticas, há de se considerar que tal procedimento obrigava ao órgão ambiental a apresentar quais seriam as soluções legais para o encerramento do processo. Apesar do "estímulo" que a administração pública pretende manter (artigo 95-A) para a adoção das "soluções legais", em tese não há mais tal obrigatoriedade (de apresentação de tais soluções pelo Estado), devendo o autuado contar com o apoio especializado para definir as estratégias para sua defesa (ou mesmo para propor e aderir a uma das soluções de encerramento do processo ambiental).
c) Das provas no processo sancionador
Considerando que a responsabilidade administrativa tem natureza jurídica subjetiva, conforme jurisprudência [6] do Superior Tribunal de Justiça, existe a necessidade de que o auto de infração esteja acompanhado de provas que comprovem a ocorrência e a autoria do fato tipificado como ilegal.
Tais provas devem estar acostadas preferencialmente no relatório de vistoria, documento técnico que faz parte do processo administrativo e complementa o auto de infração (artigo 98 do Decreto 6.514/08). A nova redação deste artigo trazida pelo Decreto 11.373/23 expressa a possibilidade de utilização de imagens de satélite (inciso II) para subsidiar a elaboração do relatório e consequentemente do auto de infração — já antecipando os possíveis procedimentos de fiscalização via "embargo remoto" noticiados [7] na mídia.
Caso sejam necessárias outras provas para o julgamento do auto de infração, a autoridade julgadora poderá assim requisitar (perícia ambiental, oitiva de testemunhas, por exemplo), conforme nova redação do artigo 119 do Decreto 6.514/08.
d) Da publicidade das sanções e dos embargos
A publicidade das sanções administrativas estava indicada desde a primeira edição do Decreto 6.514/08 (artigo 149), inclusive fazendo uma relação com o (inexistente) Sistema Nacional de Informações Ambientais (Sisnima), instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/81) que até a presente data só existe nos textos normativos. A ausência de sistema ou uma mínima padronização das informações na Administração Pública confirma a dificuldade em disponibilização destes dados para a sociedade.
Os §6º e 7º do artigo 96, em sua nova redação, ratificam o caráter de dados públicos dos autos de infração e termos acessórios, respeitadas as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Espera-se que haja transparência na divulgação dos dados e que um Sistema de Informações Ambientais possa ser efetivamente instaurado pela nova gestão.
f) Da representação processual
A nova redação do artigo 116 retirou a condição de "não-conhecimento" da defesa em caso de falta de procuração para representação legal no processo, mantendo-se o prazo de 15 dias para a sua juntada para fins de regularidade da representação processual administrativa. Uma alteração positiva, do ponto de vista da advocacia ambiental.
g) Das alegações finais
As alegações finais, como seu próprio nome refere, é instrumento processual que viabiliza juridicamente as manifestações finais do autuado, após a instrução administrativa. É o último momento, na instância ordinária, para que se apresente argumentos a consolidar a tese de defesa, buscando um julgamento de improcedência do auto de infração (absolvição do infrator).
Muitas vezes relegada a uma menor importância, retomou seu papel de destaque com a mudança do decreto, sendo a derradeira oportunidade de requerimento da conversão da multa em serviços ambientais.
Porém, o Decreto11.373/23 trouxe uma espécie de "jabuti" em seu artigo 2º, quando convalidou todas as notificações por edital para apresentação de alegações finais realizadas até a data de publicação do Decreto 11.080/22.
A convalidação decorre de uma decisão da Presidência do Ibama no governo anterior: no caso concreto, quando o Ibama notificava pessoalmente o autuado da infração ambiental, deveria também notificá-lo pessoalmente para a apresentação das alegações finais. Porém, ao invés da notificação pessoal, o órgão ambiental utilizava do edital para este chamamento — o que gerava uma discussão sobre os princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório e devido processo legal.
Ainda que juridicamente bem fundamentada e apoiada [8] em jurisprudência dos tribunais superiores, a medida foi muito criticada [9], sob argumento que haveria prejuízo ambiental e "isentaria infratores de multa".
A convalidação trazida no Decreto 11.373/23 visa restabelecer os processos administrativos que tiveram reconhecida a nulidade [10] de notificação por edital para apresentação de alegações finais, quando o administrado não é indeterminado, desconhecido ou com domicílio indefinido.
Uma polêmica discussão que não acaba neste decreto e certamente será levada ao Judiciário.
h) Da conversão da multa em serviços ambientais
Outra mudança constante que ocorre nos processos administrativos ambientais, de acordo com a gestão política da vez, é no procedimento "Conversão de Multa Simples em Serviços de Preservação, Melhoria e Recuperação da Qualidade Ambiental".
Esse é um assunto que importa estrategicamente para o infrator, mediante a avaliação jurídica de oportunidade e conveniência, pois estabelece descontos diferenciados sobre o valor da multa consolidada, de acordo com o momento do requerimento da conversão.
Na "nova" redação do artigo 142, fica estabelecido que o pedido de conversão deve ser requerido pela defesa até o prazo máximo das alegações finais — inclusive podendo ser requerida a conversão neste momento, caso ainda não tenha sido.
O deferimento (ou não) da conversão será decidido pela autoridade julgadora no momento do julgamento do auto de infração, nos termos da redação do artigo 145. Não há mais a oportunidade de realização da conversão pela instância recursal, como estava previsto no decreto até a recente alteração. Contudo, há viabilidade de recurso hierárquico em caso de indeferimento da conversão requerida.
Deferida a conversão, será firmado termo de compromisso ambiental (TCA) com o órgão competente, que tem efeitos nas esferas cível e administrativa.
A conversão da multa em serviços ambientais poderá ser operacionalizada de maneira direta (quando o próprio autuado apresenta uma proposta de serviço ambiental ao órgão competente) ou de maneira indireta (quando o autuado, pagando uma quota-parte, adere a um serviço ambiental previamente estabelecido pelo órgão competente).
Os descontos para a conversão da multa simples em serviços ambientais voltam a variar conforme a modalidade de conversão e o momento do seu requerimento:
a) modalidade direta, desconto de 40% sobre o valor da multa consolidada quando requerida a conversão no prazo de defesa; ou de 35% quando requerida a conversão até o prazo das alegações finais.
b) modalidade indireta, desconto de 60% sobre o valor da multa consolidada quando requerida a conversão no prazo de defesa; ou de 50% quando requerida a conversão até o prazo das alegações finais.
Este desconto diferenciado, de acordo com a modalidade escolhida de conversão, nos parece equivocado, pois em ambas modalidades há a chancela do órgão ambiental competente. De qualquer sorte, como não cabe conversão de multa para reparação de danos decorrentes das próprias infrações nos processos administrativos federais, a modalidade indireta de conversão é mais atrativa tanto ao infrator, que recebe um desconto maior; como ao órgão ambiental, em razão de ser um instrumento arrecadatório mais eficiente em relação ao pagamento da multa.
i) Conclusão
Novo governo; porém, um processo administrativo sancionador ambiental não tão novo assim. A conciliação, que na prática, mal teve tempo de ser implementada, acaba nos processos federais. E o processo administrativo na modelagem antiga — e que nunca foi modelo de eficácia na prevenção de infrações ambientais ou cobrança de multas — é retomado.
É fundamental um olhar atento aos processos sancionadores que estavam em andamento na vigência da norma anterior, pois direitos adquiridos dos autuados (audiência de conciliação e conversão na instância recursal, por exemplo) devem ser respeitados, em razão do tempus regit actum.
Presume-se que sejam regulamentados os dispositivos via instrução normativa (ou outro instrumento), garantindo a transição do modelo que previa a audiência de conciliação para o atual (sem conciliação), de forma a alinhar a continuidade de processos já iniciados. No mínimo, recomendável que a autoridade ambiental notifique pessoalmente os autuados pelo sistema anterior, de forma que se estabeleça o marco temporal do início do prazo de 20 dias a apresentação da defesa. A partir disso, o autuado poderá — se tiver interesse — aderir a uma das soluções legais para encerrar o processo.
Os municípios e estados que recepcionaram (e seguem) o processo administrativo ambiental previsto no Decreto 6.514/08 deverão se adequar a tais alterações. Os entes federados que têm lei própria sobre o processo sancionador, estabelecido conforme as peculiaridades locais - não precisam se preocupar, pois as modificações são restritas à esfera federal e não afetam tais procedimentos.
Estejam preparados: as mudanças (ou nem tanto) na área ambiental não esperaram o recesso e começaram cedo! Feliz 2023 a todos!
[1] https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/05/06/menos-de-2percent-das-multas-aplicadas-passaram-por-audiencia-de-conciliacao-nos-ultimos-2-anos-aponta-ibama-ao-tcu.ghtml [2] Artigo 334 [3] https://www.conjur.com.br/2019-jun-01/alexandre-burmann-analise-decreto-multas-ambientais [4] https://auditoria.cgu.gov.br/download/12741.pdf [5] https://www.conjur.com.br/2023-jan-04/paulo-bessa-nova-estrutura-ministerio-meio-ambiente [6] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2019/Primeira-Secao-consolida-entendimento-de-que-responsabilidade-administrativa-ambiental-e-subjetiva.aspx [7] https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/11/30/transicao-grupo-de-meio-ambiente-estuda-fiscalizacao-remota-para-acelerar-combate-ao-desmatamento-ilegal.ghtml [8]Sobre o tema, Talden Farias: https://www.conjur.com.br/2022-jun-20/talden-farias-alegacoes-finais-correta-intimacao-processo-ambiental [9] https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2022/06/27/mpf-abre-investigacao-para-apurar-possivel-prejuizo-bilionario-com-despacho-do-ibama-que-isenta-infratores-de-multas.ghtml [10] Despacho nº 11996516/2022-GABIN, do presidente do IBAMA.
Fonte: Conjur
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